[Meu Conto] #01 Andróides sonham com túmulos planadores?

segunda-feira, 18 de agosto de 2014 0 comentários
[Tentativa durante a viagem de férias: um tanto conto, a maior parte crônica]

18h47 - Prelúdio à danação
Rodoviária com poucas pessoas - sete sentadas nos bancos com vista para os ônibus que chegam e parte, três de pé aguardando atendimento. Dois atendentes nos caixas. Eu, academicamente, com meu "voucher" - termo chique para um pedaço de papel impresso com a notação de meus dados e da realização do pagamento da passagem - segui para a atendente que me informou que o ônibus, previsto para 19h20, poderia - na impossibilidade verbal de mencionar "provavelmente" - chegar às 21h30. Quando informei que gostaria de mudar a passagem para um ônibus antes disto, recebi uma lição de vida sobre 1) o atraso, 2) imprevisibilidades e 3) desleixo meu na leitura de informações contidas no site - que fique claro que o aviso de "possível atraso" apareceu depois do pagamento.
A atendente iria resolver - com pálpebras baixas, lábios pressionados e inspirando profundamente antes de entrar numa sala, que permaneceu por 14m. Enquanto isto, uma (provavelmente) senhorita se aproximou de mim e perguntou onde estava a atendente. Quando respondi que ela havia entrado na sala - apontei, caso não fosse claro que só havia uma sala próxima ao guichê. Ela, singelamente disse "ela foi tomar café... deve tá estragado... ela tá demorando, né, moço?". Olhar de canto para ela, pisquei duas vezes para obter autocontrole e purificação auditiva. "Como eu disse, ela entrou na sala. Não conheço o procedimento que ela esta realizando". Viro-me novamente para o grande mapa e o verifico pela 19 vez, buscando erros gramaticais e relembrando a história (recente) da formação de Rondônia - datas tão simples e recente que não exige muito para rememoração, bem como nomes já conhecidos e ausência de mudança político-econômica significativa.
A atendente volta. Olho em direção à moça esperando que ela faça algum comentário em frente à atendente. Previsivelmente ela não faz. Apenas ri com um molar enegrecido - provavelmente pelo abuso de doces, que o diga seu formato de abdômen.
Pronto. Eu iria partir 21h. Como não há deuses, não há orações ou pedimos. Apenas cálculos da probabilidade de chegada em tempo pela visualização da chegada de outros ônibus.
Enfim, o ônibus - diferente do reservado e pago originalmente - chegou e sentei-me na última! Repito, última poltrona porque "era o que tinha pra ontem".
Um sujeito de aproximadamente 21cm mais alto que eu - como se fosse um feito monstruosamente difícil - e provavelmente 35kg a mais se sentou ao meu lado e começou a disputa pela permanência com os braços no encosto central. Obviamente eu nunca iria ceder a um sujeito que chegou depois e tinha características hiperativas e de efeito de álcool - levantou três vezes para pegar água, uma pra verificar a bagagem na parte superior e uma para ir ao banheiro.
O ônibus partiu. Alguns quilômetros depois em baixou completamente o assento e fiquei livre para deixar a luta pelo encosto de braço e ficar com a posse definitiva.
Como era previsível, ele roncava loucamente. E pior, intermitentemente. O que era mais incômodo. Um trovejar em estalo, uma parada, um tempo variável e lá estava novamente a emergência do trovejar.
Em Ji-paraná ele partiu. Em Ouro Preto foi substituído por um irmão mais novo de um típico jovem, sentado na cadeira em frente a minha, utilizando notebook, celular e mandando mensagens de voz. Exemplo: "Bróder, o busão tá lotaaaado, mano". Imagina meu fascínio diante desta narrativa.
Enfim, chegando em Porto Velho - quase ansioso para parabenizar o motorista pelo tempo aproximadamente exato que fez - passei pela cabine de direção, disse-lhe bom dia e "fizeste um excelente tempo de viagem". Obviamente ele disse "O que?". Eu virei as costas e sai. Repetir era demais.
Corri para um táxi que me levou ao aeroporto por uma quantia exorbitante, além de ter sido inadequado. Ele era o penúltimo da fila. Mas nenhum dos outros disse nada. 1) Era alguém importante ou 2) era alguém perigoso. Ainda poderia ser a conjunção de 1 e 2.
Muitos sujeitos agasalhados já aguardavam em frente ao guichê da companhia aérea, sentados. O guichê ainda estava fechado, claro.
Fui à "praça" de alimentação. Depois de gastar R$14,50 - obviamente revoltado com um expresso tão terrível e fora dos padrões - dirigi-me ao guichê.

5h52 - O início dos túmulos flutuantes
Bagagem despachada, bilhetes colhidos. Dirigi-me para a sala de embarque. Sete, repito sete - cabalístico, não? - sujeitos vestidos de laranja sorriam e riam de algo dito pelo membro mais corpulento, apoiado na parede - provavelmente seu humor estabelecido por um processo de reforçamento de suas piadas e não da percepção de seu tamanho corporal.
Sentei-me adequadamente e voltei a ler - sim, li o tempo inteiro no ônibus e no táxi admirado com a descrição de Stephen King no livro quatro de A Torre Negra.
Um avião chegou. Pelos auto-falantes descobri que não o meu. Era para Cuiabá. O "meu" havia chegado e voltado devido a ausência de energia na Torre de Comando. Então, COMO O AVIÃO PRA CUIABÁ, DA MESMA COMPANHIA, COM 10m DE ATRASO, CHEGOU E POUSOU! E AINDA IRIA DECOLAR?
Prometeram respostas sobre o que aconteceu e nossos destinos em 30m.
Enquanto isto, uma senhora, com uma criança saltitante, falava ao telefone. Era sua terceira ligação que eu ouvia a respeito do pobre sujeito ao lado dela que se tornara seu "companheiro de viagem", "ele conhece Altamira e vai me mostrar tudo lá" - eu a vi olhando para ele e rindo, ele olhando pro chão (obviamente que vi pelo reflexo deles no vidro da sala de embarque).
Pronto. Deveríamos apanhar nossas malas na sala de desembarque e nos dirigirmos novamente para o guichê da companhia.
Era a desolação: saindo da sala de desembarque, com as malas, no lugar que não cheguei a embarcar e enfrentando um fila de muitos metros de pessoas que diziam inúmeras coisas, inclusive que achavam bom "termos perdido o vôo", já que achavam - eram quatro discutindo - que o avião tinha problemas mecânicos. De onde tiraram a ideia eu não faço ideia e não iria interagir para descobrir.
Dirigimo-nos para a vam. Ela nos levava ao hotel ao som de sertanejo do pior tipo: repetitivo e pretensamente acadêmico chamado "universitário".
Um sujeito teve a ousadia de dizer alto, em meio a risos e cumprimentos: "pelo menos o atraso serviu pra conhecer gente nova. Gente bacana".
ERROR! ERROR! ERROR! ERROR! ERROR! ERROR! ERROR!
De onde a pessoa tirou isto? Qual caminho lógico ela seguiu?
Pior ainda. Eles tinham excelente memória. Ao sairmos da vã e nos dirigirmos ao café da manhã um deles disse: você, Abrão? (Olhos girando na órbita corrigi:) É Abraão.
Ele: senta cá gente - era o grupo da vã acadêmica - já que era alegremente preenchida pelo sertanejo universitário.
Eu: Preciso ler. Obrigado.

Ao voltar ao salão para pegar as chaves-cartão e me dirigir pelos corredores achei meu apartamento. Não falarei dos detalhes agora, esperarei ter paciência para uma descrição do abuso tenebroso de amadeirado e formatos de espelho em "gota". Coloquei a chave no local e NADA!
Este lado do hotel estava sem energia e o gerador estava alimentando a sala de refeições.
Sem comentários maiores.
O telefone discretamente toca - não imagino como alguém poderia acordar com um som tão discreto, quase de outra dimensão - e me avisam que virão buscar os reféns, digo, clientes às 20h e não mais às 18h! Mais duas horas de atraso. A previsão para chegada que antes - na primeira tentativa - era de 12h40, passou para 4h35 de 13/07 e agora é 6h50.
Juro-te pela cabine do Doctor Who que eu só desejava um planador, mesmo que fosse o pretenso túmulo pelos sujeitos com "mania de justificação irracional".
Se alguém tiver notícias de um avião que caiu em Manaus voltando de Porto Velho maldiga que eu não estava nele. Pelo menos não teria de passar pelo vexame que foi o almoço.
Fim.


[Caso não tenha ficado claro, o título é uma adaptação da obra de Gibson "Andróides sonham com ovelhas elétricas". E o "túmulos planadores" diz respeito ao provável acidente aéreo que sofreria, caso a história fosse diferente.]

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